11 ago Uma esperança contra o ebola
A história do médico americano que recebeu um recurso inédito contra o vírus ebola parece roteiro de cinema. Kent Brantly, de 33 anos, participava de uma ação humanitária em países africanos afetados pelo ebola, um vírus altamente letal – ele chega a matar nove de cada dez infectados. Na tentativa de aliviar o sofrimento numa região onde falta tudo, contraiu o vírus. Adoeceu gravemente, com dificuldade respiratória e erupções generalizadas sobre a pele. Teve certeza de que morreria. É o que disse aos colegas. Eles propuseram uma tentativa desesperada: injetar nele uma droga experimental nunca antes testada em humanos. Brantly aceitou. Em apenas uma hora, a intensidade dos sintomas diminuiu. Alguns dias depois, ele desembarcou em Atlanta, nos Estados Unidos, onde foi mantido em total isolamento. Na saída da ambulância, não precisou de maca ou cadeira de rodas. Simplesmente caminhou.
Antes que essa imagem corresse o mundo, a vida dos nove funcionários da Mapp Biopharmaceutical Inc., uma pequena empresa de biotecnologia instalada em San Diego, seguia sem atropelos. A pesquisa de novas drogas obedece a etapas rígidas e trâmites regulatórios complicados. Primeiro, elas são testadas apenas em células. Depois, em camundongos ou primatas. Quando há indícios convincentes de que sejam seguras e eficazes, os pesquisadores são autorizados a iniciar estudos em humanos. Primeiro, numa dezena de pacientes, depois em grupos maiores, até chegar a milhares deles.
A história de Brantly pode convulsionar essas etapas, algo incomum e indesejável quando se trata de pesquisa científica. A droga injetada nele, desenvolvida pela Mapp em conjunto com um instituto de pesquisa das Forças Armadas, não passa de uma aposta. Antes de Brantly, apenas oito macacos receberam a ZMapp, como a injeção misteriosa vem sendo identificada.
Segundo um estudo publicado no ano passado, 43% dos macacos se recuperaram depois de receber uma injeção da droga entre 104 e 120 horas após a infecção pelo vírus. O ZMapp é um coquetel de anticorpos criados em laboratório para reconhecer o ebola e estimular o organismo a atacá-lo. Para produzir anticorpos em quantidade suficiente para a pesquisa, os cientistass criaram uma variedade de tabaco transgênico capaz de produzir as proteínas desejadas.
Não há notícia de alguma outra droga experimental que tenha pulado tantas etapas fundamentais de desenvolvimento antes de ser oferecida a um ser humano. Não é possível sequer afirmar que a recuperação de Brantly tenha realmente sido causada pela ZMapp. Nem prever a duração do efeito, caso ela seja, de fato, responsável pelo desaparecimento dos sintomas. Diante da morte, Brantly não tinha outra opção a não ser aceitar a injeção e concordar em assinar um longo termo de consentimento. A enfermeira americana Nancy Writebol, de 59 anos, também infectada na Libéria, recebeu duas doses e foi transferida para os Estados Unidos. Até o fechamento desta edição, o estado de saúde dela era grave.
O recurso inédito oferecido aos americanos despertou discussões éticas. “Muitos africanos também estão morrendo”, afirmou o virologista Robert Garry, da Universidade Tulane, em Nova Orleans. “Se podemos fazer isso pelos americanos, certamente podemos acelerar o processo e tornar esse recurso acessível aos africanos.” No atual surto, o ebola infectou mais de 1.700 pessoas em países como Libéria, Guiné, Serra Leoa e Nigéria. Mais de 930 morreram – um índice de mortalidade de cerca de 60%.
O cientista Peter Piot, um dos descobridores do vírus em 1976 e atual diretor da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres, também defende
a oferta da droga experimental aos países afetados. Segundo ele, é provável que as autoridades apressem o acesso a drogas experimentais se o vírus mortal avançar sobre as nações ocidentais. “Os governos africanos deveriam ter a opção de decidir se devem oferecer recursos experimentais a quem corre alto risco de infecção, como os trabalhadores da saúde”, disse. “Se eu tivesse sido exposto ao ebola, correria o risco de usar uma droga como essa.”
Na próxima semana, um comitê de ética convocado pela OMS discutirá o assunto. Segundo o presidente americano, Barack Obama, é prematuro oferecer a droga experimental à África neste momento. “Devemos deixar que a ciência nos guie”, disse. “Não creio que tenhamos todas as informações para determinar se o remédio é eficaz.” Os americanos receberam as injeções segundo a lógica do uso compassivo, autorizado pelas autoridades que controlam pesquisas clínicas em casos extremos, quando a vida do paciente está em risco e não existe qualquer outro tratamento eficaz. Antes da melhora espetacular de Brantly, a empresa que desenvolve o ZMapp não pretendia pedir autorização para começar a testá-lo tão cedo. Se pedisse num estágio tão precoce, certamente seria negada.
Outros laboratórios investem em diferentes armas contra o ebola. Em setembro, começam os testes em humanos de uma vacina capaz de proteger macacos. “Começamos a discutir acordos com empresas farmacêuticas para acelerar as pesquisas”, diz Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas dos Estados Unidos. “Essa vacina poderá estar disponível em 2015 para os trabalhadores de saúde expostos a grandes riscos.” O maior obstáculo ao surgimento de recursos contra o ebola não é científico – é mercadológico. Surtos esporádicos, que afetam normalmente um pequeno número de pessoas na África, não representam um mercado capaz de recompensar os investimentos da indústria farmacêutica em pesquisa. O avanço da doença sobre países populosos como a Nigéria e a intensa circulação de pessoas entre os continentes podem fazer o ebola chegar a países jamais afetados. A ameaça e o mercado podem surgir.
Fonte: Época
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